No tempo do Caymmi


Há 100 anos, nascia em Salvador Dorival Caymmi, cantor e compositor que retratou a Bahia como poucos. A obra curta acabou rendendo longa história

No tempo do CaymmiO balanço das ondas, o calor do sol, o cheiro da água salgada, a areia, as redes saindo do mar cheias de peixes, o canto dos negros, Jesus Cristo e os orixás. Essa era a base da música feita por Dorival Caymmi (1914-2008), baiano de Salvador que apresentou um retrato fiel de sua terra em tantas composições, hoje consideradas imortais. Mais do que lás e dós, eram os costumes da cidade e do povo que o intrigavam e moviam.

Filho do funcionário público e músico amador Durval Henrique Caymmi com Aurelina Cândida Caymmi, que, dizem, também cantava muito bem, Dorival nasceu em 30 de abril de 1914. Com pouca idade, já acompanhava curioso as cantorias de dentro de casa. Adolescente, começou a aprender violão. E assim, ao mesmo tempo em que larga os estudos ainda no ginasial para trabalhar, começa a se arriscar nas primeiras composições. A inaugural chamou-se “No sertão”, já anunciando o talento para falar da Bahia.

História Antes de assumir a composição, Dorival trabalhou como auxiliar de escritório e vendedor de cordões para embrulho e bebidas. Também ganhou alguns concursos carnavalescos. Cantava na Rádio Clube da Bahia, mas foi no Rio do Janeiro, para onde se mudou em 1937, que sua música chamou a atenção. A história foi contada em “Peguei um Ita no Norte”, referindo-se aos navios a vapor que levavam cargas e passageiros de norte a sul do Brasil. A incerteza de viver em outro lugar ficou clara nos versos “talvez eu volte pro ano. Talvez eu fique por lá”.

 

Mas a aventura foi boa para o baiano, que nunca tirou sua terra da cabeça. Além de desenhar e pintar com mais frequência, outra paixão que exercitava havia muitos anos, Caymmi entrou para o elenco da poderosa Rádio Nacional. Foi lá onde conheceu a cantora Stella Maris, com quem esteve casado até o fim da vida. Foi no Rio também que Caymmi apresentou a sua “O que é que a baiana tem?” para Carmen Miranda. O samba ganhou uma nova dimensão no corpo e na voz da cantora luso-brasileira e ganhou repercussão internacional quando foi incluída no filme Banana da terra (1938).

“O que é que a baiana tem?” começou a ser composta na Bahia e foi encerrada no Rio, revelando que Caymmi seguia somente seu próprio tempo na hora de compor. Por isso mesmo, em tantas décadas de trabalho, deixou pouco mais de 100 canções registradas. Muito pouco, se comparado a outros mestres do seu quilate. Os discos também não foram tantos, mas sempre com o mesmo cheiro do mar que admirava. Mais do que discos temáticos, todo o pensamento musical de Caymmi era único, sempre com a Bahia e seus costumes à vista. Isso já fica claro na largada, com o antológico Canções praieiras, de 1958.

Para compensar as poucas gravações, Dorival Caymmi nunca foi esquecido por outros intérpretes. A começar pelos filhos, Nana, Dori e Danilo Caymmi, sempre envoltos em projetos individuais ou coletivos que resgatam a obra do pai. O último deles foi lançado ainda em 2013, trazendo apenas as canções mais obscuras do pai. Além deles, Rosa Passos, Gal Costa e Jussara Silveira já dedicaram discos inteiros à sua obra, enquanto outros já lhe dedicaram pelo menos uma faixa. De Novos Baianos, com Samba da minha terra, até Tom Jobim, com Maricotinha.

Tivesse surgido nos tempos de hoje, talvez Caymmi não tivesse alcançado o reconhecimento merecido por não se interessar pela velocidade que uma carreira exige. Também não se preocupava em se expor ou com vaidades. Respeitador do próprio tempo, preferiu usou as melodias para pintar um quadro fiel da Bahia, desde os perigos do mar até o balançar sinuoso de uma mulata baiana.

Tributos e relançamentos celebram os 100 anos de Dorival

A família Caymmi abriu as comemorações pelo centenário do patriarca ainda em 2013, com um tributo que reuniu os filhos Nana, Dori e Danilo. Reunindo apenas composições raras, o disco Caymmi (Som Livre) traz temas desconhecidos até pra família, como “Sereia” e “Quando eu durmo”.

Idealizado por Dori, também está a caminho o tributo Dorival Caymmi: Centenário, que vai contar com as presenças de Caetano Veloso, Mário Adnet, Chico Buarque, Gilberto Gil, Nana e Danilo Caymmi. Além dos momentos solos, os convidados se encontram em faixas como “O que é que a baiana tem?” e “Minha jangada vai sair pro mar”

Diferente dos anteriores, o disco Dorival Caymmi – 100 anos (Universal) vai compilar 28 regravações de canções do baiano. Elza Soares, Dick Farney e Clara Nunes são algumas das vozes presentes. O próprio Dorival comparece como intérprete em “Risque” e “Na Baixa do Sapateiro”, ambas de Ary Barroso.

Além dos discos, a neta Stella Caymmi reeditou a biografia O Mar e o Tempo (2001). O novo posfácio atualiza os últimos anos de Caymmi, falecido em 2008. Ela também planeja uma exposição fotos, letras e pinturas que estreará no Centro Cultural Correios de São Paulo. (Marcos Sampaio)

 

Fonte: Jornal O Povo – Caderno Vida & Arte