Memórias de um certo João


A vida é mesmo um paradoxo: Caminhando em Paris, mais precisamente em frente a catedral de Notre-Dame, símbolo máximo do catolicismo francês, deparei-me com o agnóstico e comunista autêntico João Amazonas. Um encontro que o destino me surpreendeu e que guardo até hoje em minha memória. Vestindo um terno impecável que cobria um elegante suéter, aquele senhor educado, magro, calvo, de ralos cabelos brancos e de voz mansa me fez esquecer por alguns momentos a beleza dos monumentos parisienses.

 

Se bem que estava diante de um verdadeiro monumento. Apesar de não comungar ideologicamente e religiosamente com aquele senhor, adimirava-o pela sua obstinação. Reconhecendo-o, tomei a iniciativa de cumprimentá-lo. Fui muito bem recebido por ele, que me convidou para sentar no banquinho da praça em frente a Notre-Dame. Tomamos um suco e degustamos um bom papo sobre a sua vida, sobre o Brasil. De repente, o badalar do sino da catedral: meio dia! Fiz o sinal da cruz e João atentamente me observava. Sabia de sua incredulidade. João abaixou a cabeça em sinal de respeito. Até determinado momento, pensei que fosse repetir o meu gesto. Silenciou, e passados alguns segundos, a boa conversa estava de volta.

 
João me falou que a França sempre era seu ponto de chegada na Europa. De lá, costumava viajar para a extinta União Soviética onde saboreava com seus camaradas a doutrina marxista acompanhada de uns goles de vodka e retornava pela pobre Albânia, onde em Tirana encontrava-se sempre com Enver Hoxha, líder máximo do PC Albanês. Fez questão de dizer-me que era extremamente fiel aos seus ideais, algo raro em nossos políticos de hoje. Aos 23 anos filiou-se ao Partido Comunista. Mesmo tendo Amazonas no sobrenome, João era um Paraense que sonhava com um Brasil comunista. Pois é, se os brutos também amam, os incrédulos também sonham! João mostrou-se puro e autêntico em suas afirmações. Seus olhos brilhavam quando narrava passagens históricas de sua vida. Mostrou-me uma grandeza ímpar: Em momento algum esboçou rancor ou ódio para com seus adversários.
 
 
O tempo passou e logo mais uma badalada do sino anunciava duas da tarde. Confessei a João a alegria de tê-lo ali por aqueles momentos. Tiramos fotos e para minha surpresa João convidou-me para um chá no dia seguinte. Imediatamente indaguei-o: – Na sede do partido comunista francês? Ele esbanjou um sorriso e disse: – Não camarada, vamos a Maison Dalsace nos Champs Elisées. Despedi-me e fui continuar meu tour.
 
 
Na tarde do dia seguinte fui para os Champs Elisées procurar o restaurante que João falou. Encontrei-o sem problemas, pois ficava em frente ao tradicional Lido. Coincidentemente, o restaurante apresentava em sua fachada um banner vermelho com seu nome em letras douradas. Parecia coisa de burguês! Nada! Ali estavam simples franceses e humildes imigrantes latinos que saiam do trabalho para espairecer sob o entardecer de Paris.
 
 
Apesar do perfil de autenticidade de João, não acreditava piamente que estaria por lá para tomar o chá. Fiquei pensando em tomar um chá de cadeira! E onde estava João? Avistei logo na chegada o comentarista de economia Joelmir Betting que lia atentamente o Le Monde. Entrei, o garçom apresentou-me de imediato uma carta de vinhos. Falei que estava esperando um amigo, Que audácia minha! Um amigo! Não passou sequer dez minutos, e João Amazonas despontava na entrada do restaurante. Vinha com dois colegas franceses que pareciam ser mais jovens que ele. Pensei logo: Com certeza João esta trazendo minha ficha de filiação do PC do B! O que é que vim fazer aqui?
 
 
Apresentou-me aos amigos que eram de um matutino francês de linha esquerdista e estavam produzindo uma matéria sobre a Albânia. Eram seis da tarde quando o chá bem esperto esquentou aquele cair da tarde do outono europeu. Conversaram muito em francês, mas João elegantemente fazia questão de traduzir tudo para mim. Por volta das sete e meia da noite nosso papo histórico ia chegando ao fim do mesmo modo que os tímidos raios de sol se escondiam por trás do Arco do Triunfo. João cavalheiramente me deu um abraço e uma lição de vida na despedida: – Camarada, mesmo com ideais diferentes, nada impede que sejamos amigos, pois acima de toda ideologia e pensamento está o respeito à pessoa humana! Não precisei mais de jantar, pois aquilo que ouvi do velho João alimentou minha alma pelo resto da noite. Entregou-me um cartão pessoal com o timbre do "partidão" o qual coloquei em meu passaporte com muito cuidado. Recomendou-me suas publicações que poderiam ser encontradas na sede do PC do B no Rio de Janeiro e que poderia telefoná-lo quando quisesse. Com um até logo meu querido camarada, o João se despedia. Perguntei se não o incomodava de dizer: – João, vai com Deus! João sorriu e disse: – De maneira alguma! E partiu.
 
 
Da França, fui de trem para Madrid. Lá chegando, na estação de metrô fui roubado em mil dólares, além de passaporte e óculos Ray-ban. Coisa de brasileiro? Nada! Coisa de espanhol! Recorri a embaixada brasileira. Meu passaporte apareceu depois de três dias na Gran Via, uma das principais avenidas de Madrid. Assim que eu pude abri-lo, não encontrei mais o cartão do João. Que pena! Era uma relíquia! Porém, fiquei com as fotos daquela audiência pública casual na praça de Notre Dame que fora marcada pelo destino.
 
 
Nunca cheguei a telefoná-lo. Acompanhei João Amazonas apenas pelos noticiários. Esta semana, surpreendi-me com a sua morte em São Paulo aos 90 anos. Relembrei-me daqueles dois históricos dias que conheci aquela figura humana que me surpreendeu. Lamentei a perda deste grande brasileiro e pedi a Deus que nos últimos momentos de sua vida, o velho João tenha deixado por alguns instantes em sua mesa de cabeceira a foice e o martelo e feito o sinal da Santa Cruz! Vai com Deus João!
 
 
por Ulysses Assis Neto