No ano do centenário de Oscar Niemeyer, é normal que a sua obra mundialmente reconhecida seja revisitada com o maior interesse. Só isso, para fazer coro com os pitagóricos, o mistério de um número, e o número cem não é um qualquer, já justificaria o interesse da revista russa Smisl (“sentido”, em português) em colher o depoimento de Oscar sobre alguns temas. Porém, depois de mais de setenta anos de arquitetura, não caberia talvez perguntar, mas procurar compreender o sentido que perpassa essa vasta e revolucionária obra onde a objetivação do traçado arquitetônico se integra de forma genial ao grande espaço, em exercício de liberdade e gênio. A Esplanada dos Ministérios já revela de modo cabal esse cuidado na intervenção pelo projeto em que a série “caixinhas”, para usar a expressão de Vitcheslav Glazíchev, não interrompe a visão perspéctica do horizonte e realça os demais edifícios intrinsecamente monumentais.
Eis por que eu e Katsirina Handrabura, diretora-geral da Smisl, optamos por fazer umas poucas perguntas a Niemeyer e que dissessem respeito à relação do artista com as suas criações ou à sua relação com o tema da cultura. É claro haveria a pergunta sobre Brasília e, sendo a revista da Rússia, haveria a pergunta sobre a mudança na capital naquele país, tema que eventualmente surge por lá.
Foram sete questões. As respostas revelam o mesmo traço despojado e humano, onde o marxista se mostra inteiramente preparado para projetar um espaço sagrado, seja uma catedral, ou uma pequena igreja, uma capelinha, na qual o homem religioso busca tornar-se íntimo de sua divindade. Niemeyer nomeia os prediletos entre os seus projetos mais recentes e insiste em um princípio de que os jovens arquitetos não deveriam jamais se esquecer: da infinidade de formas que o concreto armado encerra.
Por fim, o inquieto intelectual se insurge contra essa desgraça, que é o especialista com diploma, cuja existência mata qualquer possibilidade de vida verdadeiramente comunitária. Como se estivesse a indicar o antídoto a esse perigo, revela a sua dívida para com dois grandes russos, Tolstoi e Dostoiévski, verdadeiras escolas de uma ética solidária.
O ARQUITETO E A CULTURA
José Veríssimo Teixeira da Mata e Katsirina Handrabura: O Senhor é comunista. Sabe-se, todavia, que um de seus projetos mais apreciados é a Catedral de Brasília, cidade onde está também situada a Igreja Militar Nossa Senhora da Paz. Como as suas convicções marxistas se entendem com o catolicismo em particular e com a religião, em geral?
Oscar Niemeyer: As minhas convicções marxistas estão mais fortes do que nunca. O comunismo com que me identifico me leva sempre a recordar o heroísmo do povo russo, pelo qual nutro enorme admiração. Essas convicções político-ideológicas não entram em contradição – em princípio – com o meu interesse enquanto arquiteto pelo tema da catedral (ou de uma pequena igreja). Não acredito em Deus, mas respeito as pessoas que nele crêem. Eu mesmo provenho de uma família católica – o retrato do Papa na parede da sala. Mas desde cedo constatei que a injustiça, a desigualdade social se fazia muito profunda e opressiva, e, ainda jovem, integrei-me ao Socorro Vermelho e, mais tarde, ao PCB. Foi uma opção correta, a meu ver.
JVTM/KH: Para falarmos em termos mais amplos, como o Sr. avalia o desenvolvimento da cultura no contexto do que ocorre no planeta? Pode a cultura ajudar a nos salvar?
ON: Eu reconheço que a produção cultural de qualidade pode ou deve acolher propostas, atitudes de reação contra a desumanização do homem, contra a ampliação das margens da exclusão social. Em suma: exprimir uma ética da solidariedade, ainda hoje fundamental, que eu identifico nos grandes escritores russos do século XIX, sobretudo em Dostoiévski e Tolstoi. Por outro lado, penso que uma produção cultural comprometida com o aprimoramento do homem e a criação de uma sociedade mais justa e solidária só será possível se garantirmos aos nossos jovens uma formação melhor. Esse problema me preocupa muito, ao ver a situação dos que saem dos cursos superiores em meu país, desprovidos de uma compreensão mais ampla dos problemas da vida. Não queremos o homem especialista, esse sujeito voltado apenas para os assuntos de sua profissão. É preciso formar jovens mais qualificados para participar dessa luta fundamental por um mundo melhor. E é isso que eu procurei tratar num livro que será publicado em breve, O ser e a vida.
O ARQUITETO E A ARQUITETURA
José Veríssimo Teixeira da Mata e Katsirina Handrabura: Sua obra é considerada genial em todo o mundo. O que seria para o Senhor um gênio em arquitetura?
Oscar Niemeyer: Considero haver certo exagero nessa avaliação… Não tenho nenhuma definição fechada sobre o que seria um gênio em arquitetura.
JVTM/KH: Brasília, com certeza, detém algumas de suas experiências arquitetônicas mais conhecidas e importantes. No momento da construção de Brasília, quando todo um conjunto de projetos arquitetônicos foi colocado sob sua responsabilidade, o Senhor imaginava que se construiria uma cidade como alguma outra, ou o Senhor tinha consciência de que se estava fundando algo completamente novo? Brasília é para o Senhor uma cidade “ideal”?
ON: Brasília expressa – talvez de forma exemplar – o momento de entusiasmo que o Brasil estava vivendo na década de 1950. Entusiasmo que se deve associar à figura singela, de um verdadeiro empreendedor, que foi o presidente Juscelino Kubitschek. A construção da nova capital foi uma aventura, mas ela possibilitou a expansão e a integração de áreas importantes do interior do País. Passados mais de 40 anos, Brasília se converteu numa metrópole capitalista a exibir os problemas mais graves que afetam as grandes capitais brasileiras. Ela revela os desacertos que é possível associar ao modelo de desenvolvimento econômico adotado no Brasil. Assim sendo, não posso reconhecer em Brasília uma cidade “ideal”.
JVTM/KH: Como o Sr. avalia a idéia de se ter mudado a capital do Brasil para o centro do país? Valeria, por exemplo, se mudar a capital da Rússia para o centro geográfico do país?
ON: Foi uma decisão corajosa do presidente Juscelino Kubitschek. Não tenho conhecimentos suficientes sobre a Rússia para responder a sua outra indagação. Infelizmente conheci Moscou muito rapidamente, bem pouco tempo depois do final da Segunda Guerra Mundial.
JVTM/KH: Como o Sr. avaliaria o desenvolvimento da arquitetura atual, ele estaria na direção correta? O Sr. poderia citar algum jovem arquiteto cujo trabalho lhe agrada?
ON: Evito sempre criticar colegas. Existem tendências tão variadas na arquitetura atual que é, a meu ver, problemático fazer um juízo mais crítico a esse respeito. Continuo a defender, com o pensamento voltado para os jovens arquitetos, duas idéias básicas – a de que arquitetura é invenção (e, sob tal aspecto, todo arquiteto moderno deve seguir a sua intuição criadora, em busca da forma diferente), e a noção de que existe um mundo ilimitado de possibilidades a explorar que o concreto armado oferece aos arquitetos. Por que não explorá-las e encontrar outros caminhos para se alcançar o espetáculo arquitetural?
JVTM/KH: Quais dos seus últimos projetos o Sr. mais aprecia e trabalha o Senhor agora em algum projeto?
ON: É muito difícil responder a essas questões. São tantos os projetos recentes – no Brasil e no exterior. Eu poderia, ao menos, lembrar dois trabalhos que me agradam em particular, como o centro cultural projetado para Avilés, na Espanha, e o Centro Administrativo do Governo do Estado de Minas Gerais, a ser construído em Belo Horizonte. Nesses e em todos os demais eu pus todo o meu entusiasmo; foram todos elaborados com o maior interesse e carinho.
CRÉDITOS
Oscar Niemeyer
Prestes a cumprir 100 anos de vida, Oscar Niemeyer nasceu no Rio de Janeiro, em 1907, e formou-se arquiteto pela Escola Nacional de Belas Artes, em 1934. Mais famoso arquiteto brasileiro de todos os tempos, Niemeyer iniciou a carreira como membro da lendária equipe liderada por Lúcio Costa (Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos e Carlos Leão; consultoria de Le Corbusier), que projetou e construiu a sede do Ministério de Educação e Saúde em 1936. Apenas três anos depois, em 1939, em co-autoria com Lúcio Costa, é responsável pelo projeto Pavilhão do Brasil para a exposição em New York. Em 1940, a convite do então prefeito de Belo Horizonte Juscelino Kubitschek, realiza o conjunto da Pampulha, exposto com sucesso, junto com outras obras arquitetônicas brasileiras, no MoMA de Nova York em 1942. Em 1947, Oscar Niemeyer e Le Corbusier tornam-se os principais arquitetos da equipe responsável pelo projeto da sede da Organização das Nações Unidas – ONU, em Nova York. No final da década de 1950, novamente formando dupla com Lúcio Costa e sendo convocado pelo agora Presidente da República Juscelino Kubitschek, participa da construção de Brasília projetando os principais edifícios da nova capital do país, como a residência oficial do presidente, o Palácio da Alvorada, os palácios da Praça dos Três Poderes, o novo Itamaraty (Palácio dos Arcos), o Teatro Nacional, a Catedral de Brasília, o edifício principal da Universidade de Brasília e diversos outros. Durante o regime militar que se instala no país após 1964, Niemeyer exila-se no exterior, tendo dado seqüência a sua obra agora no exterior, construindo importante obra na Europa e África, com destaque para a sede da editora Mondadori (Milão, Itália), o Centro Cultural de Havre (Havre, França), a Universidade de Constantine e o Centro Cívico e Administrativo (Argel, Argélia), sede do Partido Comunista Francês (Paris, França) e o conjunto residencial da Exposição Interbau (Berlim, Alemanha). Atuante até hoje, inaugurou recentemente o Passeio Niemeyer em Niterói e o novo auditório do Parque do Ibirapuera, cujo conjunto de edifícios inaugurados em 1954 também é de sua autoria. Ganhou inúmeros prêmios internacionais – dentre eles, destacam-se o Prêmio Lênin da Paz (Rússia, 1963), o Prêmio Lorenzo il Magnífico (Itália, 1980), o Prêmio Príncipe de Asturias de Las Artes (Espanha, 1989), o Prêmio Unesco (França, 2001) e a principal láurea da arquitetura, o Prêmio Pritzker (Estados Unidos, 1988)
José Veríssimo Teixeira da Mata
José Veríssimo Teixeira da Mata, ex-professor da Universidade Federal de Goiás e da Universidade de Campinas, autor de uma tradução das Categorias de Aristóteles (UFG/Alternativa), componente do grupo de tradução das obras completas de Aristóteles em Portugal, interessa-se pelo tema da cidade e do urbanismo desde a antiguidade e produziu recentemente sobre o assunto o ensaio "A favor do urbanismo e da cidade” (Phrónesis, jun. 2006).
Katsirina Handrabura
Katsirina Handrabura, ex-funcionária do Instituto das Cidades em Moscou, é atual diretora-geral da revista Smisl de Moscou.
Entrevista
A presente entrevista, realizada em junho de 2007, foi publicada originalmente na revista Smisl de Moscou e republicada no mesmo mês no website russo Rosbalt (www.rosbalt.ru/2007/13/07/400107.html). Ambas as publicações ocorreram no mesmo mês da entrevista e a versão em português foi disponibilizada pelo Portal Vitruvius no mês de julho de 2007. As respostas de Niemeyer, que foram vertidas para o russo por Anastássia Bytsenko, estão aqui expostas em ordem diferente da publicação original.