Tesouro vivo


Luiz Gonzaga, o mais nordestino de todos os cantores brasileiros, foi um dia desafiado nas rimas, em público, por uma vaqueira. Mais de trinta anos depois, Dina Maria Martins Lima, a Dina Vaqueira, conta ao Blog das Ruas como isso aconteceu.Para entender direito a história, temos que voltar ao ano de 1970 quando Dina – hoje diplomada Tesouro Vivo do Estado do Ceará – foi chamada pelo Frei Lucas Dolle para ajudar a organizar a Missa do Vaqueiro, em Canindé.

A Missa do Vaqueiro é o ápice de uma romaria a cavalo em agradecimento a São Francisco das Chagas. Atualmente, é a maior romaria a cavalo do Nordeste, contando com cerca de 1500 cavaleiros na sua 38ª edição, em 2008.

Na romaria de 1976, quando Dina Vaqueira chegou ao local da Missa, se deparou com Luiz Gonzaga cantando “Boiadeiro”. Deixo para a própria vaqueira contar o que aconteceu em seguida:

– Ele olhou pra mim e cantou assim: “Morena tão bonita, me diga onde você mora”.

Respondi, com todas as letras. “Eu moro bem distante, meu marido está ali fora”.

“Pois dê lembrança a ele, se arretire e vá embora”, ele emendou.

“Eu vou me arrentirando, mas não é com medo, não. É mostrando para o povo a minha boa intenção” – respondi novamente.

Foi então que Luiz Gonzaga me abraçou e disse: “Essa nega é das nossas!”.

Uma mulher entre peões, bois e cavalos

Dina Vaqueira cresceu na fazenda do pai, chamada Barra Canção, em Canindé. Dos 12 filhos, apenas ela gostava de lidar com a natureza. “fui crescendo, vendo pai na lida de gado, gostava era daquilo lá”, diz.

Aos 14 anos, dividia então o tempo entre a escola do município e as vaquejadas, para onde ia com José Augusto Queiroz, um amigo de seu pai.

– Nas vaquejadas, eu saía sempre como batedora. Sabe como é? Segurava no rabo do boi para os colegas pegarem o bicho – lembra.

A visita de um fazendeiro mudaria para sempre sua vida.

– Sei que graças a Deus chegou um dia um fazendeiro em fazenda de meu pai, procurando uma novilha dele. Meu pai me chamou e disse para ele: “só quem pode saber de aí é a Dina” – conta a vaqueira.

E lá foi Dina, acompanhada de seus cachorros, Perigo e Perigoso [ela sempre está com uma dupla de cachorros com esse nome; se um morre, arranja outro e põe o mesmo nome. Já teve três pares diferentes].

Ela não apenas encontrou, como derrubou a novilha e a entregou para o fazendeiro, que ficou admiradíssimo com toda aquela habilidade numa mulher. “Aí pronto: espalhou a fama da Dina Vaqueira”, conta a nossa personagem.

Hoje, Dina Vaqueira é um Tesouro Vivo da cultura cearense

Por conta do trabalho, já caiu do cavalo duas vezes. Quebrou perna e clavícula. E também já sofreu preconceito.

– Ah, os homens falavam. Quando eu chegava numa vaquejada, só eu de mulher, aqueles recalcados diziam: “Já chegou a terror da vaquejada”. Ou então diziam que lá não era lugar de mulher. Mas eu sempre respondia: “lugar de mulher é onde ela se sente bem”. Comecei a conquistar o meu espaço. E com isso vieram as mulheres com ciúme dos namorados… (risos) – conta.

Dina se casou com o primeiro namorado, em 1972. “Era um homem muito bom e não me empatava de praticar esporte. Tive a vida que pedi a Deus”, suspira.

Mais tarde, o marido Fernando veio a falecer. “Ele teve uma dor de cabeça forte e morreu. Fiquei muito desestruturada”, conta Dina. Tocou a vida concentrando-se na associação de vaqueiros, boiadeiros e pequenos criadores, da qual fazia parte.

Matou a onça a pauladas

Um dos episódios mais marcantes de sua vida da vaqueira foi quando matou – junto com outros colegas – uma onça a pauladas.

– A gente matou uma onça. Foi eu sair com os colegas para campear e encontramos com a danada. Já tinha comido dois bezerros, matava muita criação. Os cachorros (Perigo e Perigoso) acuaram a onça numa caatinga. Matamos onça de pau – lembra.

Tesouro Vivo da Cultura, hoje Dina Vaqueira é presidente da associação dos vaqueiros, coordena o Grupo Som do Sertão. Participa do conselho da comunidade e é Conselheira da Lei Maria da Penha.

– Só não pego mais boi… com 56 anos não dá mais – confessa.