Obras de Ignácio Rangel e Rômulo Almeida são destacadas pelo Senado


centenários rangel e almeida 020614O Senado realizou, dia 2, sessão especial em homenagem a dois economistas, Ignácio Rangel (1914-1994) e Rômulo Almeida (1914-1988), reconhecidos pelo esforço – desde a década de 1950, no Governo Getúlio Vargas, até o Golpe de 64 – de pensar um projeto de desenvolvimento para o Brasil que incluísse as Regiões historicamente abandonadas, como o Nordeste.

Os dois, ambos nordestinos, promoveram uma análise teórica e prática da realidade nacional, das potencialidades de cada região, para criar um plano de desenvolvimento regional. A iniciativa da homenagem foi dos senadores Lídice da Mata (PSB-BA) e Inácio Arruda (PCdoB-CE), pela passagem do centenário de nascimento dos dois pensadores.

“São dois dos maiores pensadores econômicos do Brasil moderno”, afirmou o senador Inácio Arruda (PCdoB-CE) que, juntamente com a senadora Lídice da Mata (PSB-BA), apresentou a proposta de homenagem.

Ignácio e Rômulo tiveram influência decisiva no pensamento e na operação das áreas econômica e social brasileiras. Eles contribuíram com as iniciativas de implantação de diversas instituições e entidades públicas, nos últimos 60 anos, como o BNDE (depois BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), que enviaram representantes de sua diretoria à solenidade, a Eletrobrás e a Petrobrás.

O presidente do BNB, Nelson Antônio de Souza, um dos oradores da sessão, também destacou a contribuições dos dois economistas, reconhecidos pelo esforço de pensar um projeto de desenvolvimento para o Brasil que incluísse as Regiões historicamente abandonadas, como o Nordeste. Rômulo foi o primeiro presidente do BNB.

Os familiares de Ignácio Rangel e Rômulo Almeida agradeceram a homenagem, lembrando que, além do exemplo que deixaram aos parentes e pessoas próximas, eles também inspiram a todos os brasileiros comprometidos com o desenvolvimento do Brasil.

Abaixo, a íntegra do pronunciamento do senador Inácio Arruda:

A construção de uma nação é um processo histórico de longo prazo, que compromete gerações e exige a participação de todos e de cada de um dos homens e mulheres que a compõem. Nessa grande obra eminentemente coletiva, algumas personalidades se destacam pela importância de sua participação, pela originalidade de suas ideias, pela firmeza e perseverança com que se entregam à sua missão. Estamos reunidos hoje para homenagear o centenário de nascimento de duas dessas personalidades singulares, cujas ideias e cuja atuação deixaram marcas profundas e duradouras na história recente do Brasil.

Ignácio Rangel e Rômulo Almeida nasceram em 1914, quando o século XX acabara de se iniciar, e faleceram quando o século também se encaminhava para o seu final – Rômulo, em 1988; Ignácio, em 1994. Foram, portanto, testemunhas integrais e ativos participantes de um dos períodos mais importante da nossa História, quando o Brasil se constituiu efetivamente como um país unificado, deixando de ser o “arquipélago de regiões” a que se referem os estudiosos da nossa formação econômica e social.

Como descrito pelos historiadores, nos quatro primeiros séculos de nossa História, cada região brasileira se conectava muito mais estreitamente com as economias externas, para as quais exportavam seus produtos, do que com as demais regiões e com a economia nacional como um todo. A efetiva unificação do Brasil se dá com o início da industrialização do país, e com a consequente criação de um verdadeiro mercado interno que incorpora as diversas regiões num sistema integrado. É então que aflora, com toda a sua dramaticidade, a chamada “questão regional” brasileira, marcada por toda a sorte de desigualdades e desequilíbrios, que constituem, ainda hoje, os maiores entraves para o ingresso do país em um novo patamar de desenvolvimento mais justo e efetivamente sustentável.

Dedicando-se primeiramente ao estudo do Direito – foram ambos advogados de formação – Ignácio Rangel e Rômulo Almeida tornaram-se, por força de suas trajetórias pessoais, dois dos mais importantes estudiosos da economia e do planejamento nacionais, e a questão da superação das desigualdades regionais é uma das marcas fundamentais do seu pensamento e da sua atuação como homens públicos. Não por acaso, trata-se de dois filhos ilustres daquela Região que conjuga uma das maiores riquezas humanas e culturais com uma das mais injustas estruturas sociais do País – o Nordeste brasileiro.

Rômulo Barreto de Almeida, baiano de Salvador, bacharelou-se pela Faculdade de Direito da Bahia em 1933, mas desde o início de sua vida profissional optou por dedicar-se à área de planejamento e desenvolvimento econômico. Após dirigir o Departamento de Geografia e Estatística do Acre, em 1941, atuou como professor substituto da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas do Rio de Janeiro, entre 1942 e 1943. Em 1946, teve importante atuação como assessor da Comissão de Investigação Econômica e Social da Assembleia Nacional Constituinte. Entre 1948 e 1949, participou da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico, a chamada Missão Abbink. No início dos anos 50, filiou-se ao PTB de Getúlio Vargas e passou a atuar como economista da Confederação Nacional da Indústria. Foi quando conheceu Ignácio Rangel.

Ignácio de Mourão Rangel, maranhense de Mirador, filho e neto de juristas, também escolheu o Direito como sua primeira opção profissional, mas logo teve sua atenção desviada para os estudos da economia, esfera onde compreendeu que se escondiam as causas profundas das graves injustiças que permeavam a sociedade brasileira, e na qual essas precisavam ser estudadas e enfrentadas. Aos dezesseis anos, participou, de armas na mão, da Revolução de 30. Filiando-se à juventude do Partido Comunista e entusiasta da Aliança Nacional Libertadora, chegou a liderar um grupo de camponeses maranhenses prontos para apoiar o levante armado da ANL em 1935. Com a derrota do levante, enfrentou dois anos de prisão em regime fechado e, posteriormente, oito anos de prisão domiciliar em São Luís. Em 1946, chega ao Rio de Janeiro, onde a publicação de suas primeiras análises e artigos despertam a atenção dos estudiosos de então, dentre eles, Rômulo Almeida, que o convida para trabalhar com ele na assessoria econômica da Confederação Nacional da Indústria.

Em 1951, o presidente Getúlio Vargas convida Rômulo Almeida para integrar o seu Gabinete Civil, com a missão de organizar a Assessoria Econômica da Presidência da República, que deveria reunir os maiores pensadores na área de planejamento econômico, para orientar as ações de intervenção do Estado com o objetivo de destravar o processo de desenvolvimento do país. Por indicação de Rômulo Almeida, Ignácio Rangel integrará essa Assessoria Econômica. Os dois, juntamente com o sociólogo e economista Jesus Soares Pereira, darão início então a uma intensa colaboração, que resultará, entre outras coisas, na criação da Petrobrás, da Eletrobrás, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE, e do Banco do Nordeste do Brasil – BNB.

Como vemos, o foco básico da atuação da Assessoria Econômica era a necessidade de estimular, por meio de forte intervenção estatal, o desenvolvimento da infraestrutura de que o país carecia para prosseguir o seu crescimento, sem descurar da necessidade de enfrentar as desigualdades regionais, que representavam um motivo de permanente desequilíbrio nesse processo. O grupo defendia também outras posições que ainda hoje causam arrepios aos economistas ditos liberais, como, por exemplo, a necessidade de combater a inflação pela via do aumento da oferta, e não da redução da demanda. Não preciso dizer que suas ideias e ações foram violentamente combatidas, à época, pelas forças políticas, econômicas e intelectuais comprometidas com a defesa dos interesses do grande capital, principalmente estrangeiro, em detrimento do desenvolvimento nacional. Afinal, foram essas forças que levaram o presidente Getúlio Vargas ao suicídio em 1954.

Após o Governo Vargas, os membros da Assessoria Econômica tomaram caminhos individuais distintos, mas continuaram defendendo objetivos comuns, e trabalhando para que se realizassem, cada um de acordo com as suas circunstâncias.

Rômulo Almeida exerceu inúmeras funções relevantes ao longo dos anos, principalmente em seu Estado natal. Deputado Federal eleito pela Bahia em 1954, pelo PTB, assumiu no mesmo ano a Secretaria da Fazenda baiana. Nesse período, criou a primeira Comissão de Planejamento do Estado e o Fundo de Desenvolvimento Agroindustrial da Bahia, entre outras iniciativas igualmente importantes. Posteriormente, representou a Bahia no conselho da SUDENE e participou da criação da Coelba – Cia. de Energia Elétrica da Bahia. Teve atuação destacada na instalação do Polo Petroquímico de Camaçari e no Centro Industrial de Aratu, na Bahia. No Governo Sarney, foi nomeado Diretor de Planejamento da área industrial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Além de sua vocação política e administrativa, Rômulo Almeida dedicou-se com igual empenho à tarefa de disseminar o vasto conhecimento que adquiriu, atuando como professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade da Bahia, da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica, do Curso de Planejamento do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) e da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas. Jamais abandonou a militância política. Com a extinção do PTB, filiou-se, após a ditadura militar, ao MDB e, posteriormente, ao PMDB, partido ao qual permaneceu filiado até a sua morte, em 1988.

Ignácio Rangel, por seu turno, dá continuidade ao seu intenso trabalho teórico, sem jamais abdicar de uma participação ativa no debate intelecutal e na atuação direta na administração das políticas públicas, sempre que solicitado. Ingressando nos quadros do BNDE em 1955, ocuparia o cargo de chefe do Departamento Econômico da Instituição. Convidado pelo presidente Juscelino Kubitschek, assumiria a coordenação do Plano de Metas do governo, de onde nasceria, entre outras coisas, a SUDENE, cuja importância para a discussão e superação das desigualdades regionais não pode ser subestimada. Teve ainda participação destacada no âmbito do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, que ajudou a formar, na segunda metade da década de 1950, ao lado dos maiores intelectuais progressistas da época, como Nelson Werneck Sodré, Alberto Guerreiro Ramos, Antônio Cândido, Roland Corbisier, Hélio Jaguaribe e Álvaro Vieira Pinto, entre muitos outros. No ISEB, Rangel ocupou a cátedra de economia.

Vítima de um violento enfarte em 1965, Ignácio Rangel receberia dos médicos um diagnóstico de breve sobrevida, que felizmente não se cumpriu. Em 1968, retorna ao BNDE, de onde se aposenta em 1976. Mesmo aposentado, Rangel continuaria participando do debate nacional, seja por meio de ensaios, artigos e livros, ou de missões de assessoria especializada, além de nunca ter abandonado o seu trabalho docente, inspirando gerações de novos pensadores ao longo das décadas. Trabalhou incansavelmente em favor do Brasil até o seu falecimento, em 1994. Foi sem dúvida um dos maiores economistas brasileiros. Sua obra teórica nessa área, na opinião dos especialistas, só encontra paralelo, no Brasil – tanto em originalidade e amplitude de visão, quanto no capacidade de responder aos grandes desafios da construção da nacionalidade – na obra de Celso Furtado.

Foi ainda em 1953, concomitantemente com a sua atuação na Assessoria Econômica de Vargas, que Ignácio Rangel escreveu aquele que ele mesmo consideraria sempre como o seu livro mais importante, que contém a sua maior contribuição para o pensamento econômico nacional: A Dualidade Básica da Economia Brasileira, que só seria publicado em 1957, desencadeando então um grande debate entre os estudiosos do nosso processo histórico, debate este que continua fecundando o pensamento brasileiro até os dias atuais.

A tese fundamental de Ignácio Rangel é a de que não se pode entender a economia brasileira, tanto em sua evolução histórica como em sua configuração atual, sem reconhecer o seu caráter fundamentalmente dualista, formado por dois polos (um externo, o outro interno), que estabelecem entre si uma relação dialética e conflituosa, que está na base tanto das nossas crises cíclicas (econômicas e políticas) quanto das nossas fases de aceleração do crescimento, igualmente cíclicas. Essa, segundo o próprio Rangel, foi a “intuição básica” que marcou o seu pensamento econômico para sempre, inspirando todos os seus estudos posteriores, que abarcam praticamente todos os aspectos relevantes do desenvolvimento nacional, da questão agrária à urbanização acelerada, da teoria do planejamento ao equacionamento da inflação, do comércio exterior ao enfrentamento dos desequilíbrios internos.

É importante ressaltar que Ignácio Rangel não considerava a dualidade como uma maldição eterna a que a sociedade brasileira estaria condenada, mas como uma condição transitória, derivada do nosso processo de criação colonial, e passível de ser superada. Era sua firme crença que, ao fim de um processo histórico necessariamente longo e tortuoso, a nação brasileira terminará por superar as suas contradições e conflitos internos, eliminando assim a dualidade básica de sua formação e tornando-se um dos centros dinâmicos da economia mundial, capaz de executar um projeto próprio de desenvolvimento, não apenas econômico, mas civilizatório, baseado nos ideais, que ele nunca abandonou, de igualdade, solidariedade e justiça.

As ideias plantadas por homens como Ignácio Rangel e Rômulo Almeida – tanto as ideias desenvolvidas em livros e teses, como aquelas que se consubstanciaram em instituições sólidas com atuação relevante na vida nacional – constituem uma das maiores fontes de inspiração de que hoje dispomos para dar continuidade à construção desse generoso projeto. Essas ideias e instituições sobreviveram à tragédia da ditadura e ao desastre dos governos neoliberais, e permanecem vivas como uma das grandes heranças do povo brasileiro, e ferramentas essenciais na luta por sua efetiva libertação.