Isabel Allende: “Defesa da democracia e de recursos naturais são maiores legados de meu pai”


Atual senadora e filha de presidente deposto em 11 de setembro de 1973 compara atual política chilena com a da época de Salvador Allende

Ela não é a Isabel Allende mais famosa do mundo – sua prima, a escritora Isabel Allende, é uma das campeãs de venda do mundo da literatura –, mas no Chile ela é conhecida por ser a herdeira política do presidente Salvador Allende, seu pai.

Durante um seminário realizado na sexta-feira passada (6/9) pela Fundação Salvador Allende, organizado para relembrar os 40 anos do fim do governo da Unidade Popular, a senadora socialista Isabel Allende concedeu uma rápida entrevista a Opera Mundi, entre uma mesa de debate e outra.

Fundação Salvador Allende


Em tom cerimonial, a socióloga e congressista pela região de Atacama (importante reduto eleitoral allendista) falou sobre o golpe, do legado político de seu pai e comentou também a controvérsia sobre as duas versões existentes sobre a morte de Salvador Allende durante o dia 11 de setembro de 1973. Leia a íntegra abaixo.

Opera Mundi – Como a família Allende e você pessoalmente revivem aquele dia 11 de setembro de 1973?
Isabel Allende – Curiosamente, é um dia que lembramos sem ódios e até com um pouco de orgulho. Claro que foi um dia horrível, que a perda do meu pai foi algo doloroso e que eu sinto até hoje a dor de tê-lo visto pela última vez naquela circunstância, rodeada pelo medo, pela agressão que nós e todo o país vivemos. Mas aquele dia também ficou marcado pela grande demonstração de heroísmo e de consequência do presidente Allende, porque ele defendeu o país e o seu projeto até o fim, sem nunca deixar aparente sua convicção pelas transformações através da via democrática. O exemplo que ele nos deixou, no instante em que preferiu sacrificar sua própria vida, e não partir para um enfrentamento, para não ser parte da tragédia para o país que começou com aquele golpe, foi um ato que comprovou sua virtude democrática.

OM – Após 40 anos do fim da Unidade Popular, sucedido por uma ditadura de 17 anos, que legado restou do projeto político de Salvador Allende?
IA – Se falamos somente do modelo econômico, claro que o grande legado é a defesa do cobre e dos recursos naturais do país, algo que mesmo os militares mantiveram como prioridade, inclusive confrontando os economistas de Chicago (os Chicago Boys, grupo de economistas chilenos formados pela Universidade de Chicago, defensores do modelo neoliberal), que queriam privatizar tudo. Mas a Unidade Popular deixou uma marca muito mais profunda na sociedade chilena, sobretudo nos povoados mais pobres do país, que é a convicção de que se vamos mudar o Chile, faremos pela via democrática. Esse é um valor absoluto, e vemos que as manifestações por melhor educação, saúde e direitos trabalhistas defendem sempre o caminho de mudanças pela via democrática, como o projeto de nova maioria social que Michelle Bachelet pretende promover, reformas com respeito à institucionalidade. Mesmo o Marco Enríquez Ominami, que é uma alternativa de esquerda, também se apresenta como uma esquerda incondicionalmente democrática. E essas frentes todas só têm o apoio das pessoas porque são iniciativas democráticas, as pessoas entendem que essa é a forma de alcançar mudanças duradouras.

OM – Que diferenças existem entre o que tentou impulsar o presidente Salvador Allende com respeito a educação, saúde e combate à desigualdade, em comparação com o que os movimentos sociais pedem hoje nas marchas?
IA – As diferenças estão, sobretudo, no que havia quando Allende chegou ao poder, porque naquela época, para a maior parte da população, não havia escolas e hospitais, enquanto o que vemos hoje é um país onde não faltam escolas, mas elas não dão um acesso equitativo a todos os chilenos, então reproduzem a desigualdade existente no país. Sobre os hospitais, existem mais que antes, mas continuam sendo insuficientes e determinantes do modelo de exclusão, onde alguns têm acesso a melhores serviços que outros. A Unidade Popular pretendia expandir a educação e a saúde promovendo acesso a todos os chilenos por igual, e o que a ditadura impulsou depois foi um crescimento baseado na segregação social. Por isso, creio que o que as ruas pedem hoje é consertar essa distorção principal, querem um modelo educacional e sanitário que seja igual para todos, como o que imaginou Salvador Allende.

 

 OM – Olhando para o passado com uma perspectiva histórica, você acha que poderia ser evitado aquele golpe de estado? O governo de Allende poderia ter escapado do golpe se fizesse as coisas de outra forma?

IA – Acho que não. Meu pai fazia política e queria politizar a sociedade chilena para que ela defendesse as suas mudanças, por isso quiseram derrubá-lo. Os que planejaram o golpe e os que executaram o golpe, que não foram os mesmos, ambos queriam interromper a política, evitar que aquele projeto desse certo. Claro que, fazendo uma reflexão sobre os acontecimentos, encontramos coisas que poderiam ser feitas de melhor forma, mas elas não teriam impedido o afã dos setores que queriam interromper aquele governo de qualquer forma.

OM – Falando novamente de legados, alguns movimentos sociais criticam a Concertação (coalizão política de Centro Esquerda, que governou o país por 20 anos e que hoje é oposição ao governo de Sebastián Piñera) de ser “administradora do modelo da ditadura”. Como integrante da Concertação, o que você pensa desse argumento?
IA – Efetivamente, alguns anseios da sociedade chilena não foram alcançados pelos governos da Concertação, por diversos motivos, porque tivemos que enfrentar os senadores designados (entre 1990 e 2005, o parlamento chileno manteve 12 senadores vitalícios designados pelas Forças Armadas, um deles era o próprio Augusto Pinochet), os quóruns qualificados (as reformas institucionais no Chile, como as da Constituição, do modelo tributário, educacional e trabalhista, entre outros, requerem os votos de dois terços de ambas as Câmaras para serem aprovados) e outras travas deixadas pela ditadura. Não acho que tenha faltado vontade de fazer as mudanças, mas agora existe um cenário em que a cidadania e os projetos políticos estão empurrando pro mesmo lado das reformas, que começam por acabar justamente com essas travas.

OM – Em 2012, a Corte de Apelações determinou, após a exumação realizada no corpo de Allende, que o ex-presidente se suicidou naquele dia 11 de setembro de 1973, mas alguns legistas e historiadores contestam esse resultado e insistem na tese de que ele foi assassinado pelos militares que invadiram o Palácio de La Moneda. Qual é a posição oficial da Família Allende sobre o caso?
IA – Para nós, não existe controvérsia. Essa não foi a única perícia realizada no corpo de Allende, e todas mostraram os mesmos resultados. Sabemos o caráter que tinha o presidente Allende, e que esse gesto final corresponde ao que uma pessoa como ele tomaria diante da situação limite que enfrentou.

 

Fonte: Opera Mundi

 

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