A dissimulação de objetivos e procedimentos é natural nas estratégias de guerra. No caso da Líbia, salvo vazamentos sensacionais, decorrerão anos até que tenhamos acesso à “verdade efetiva das coisas”, para usar Maquiavel. Mas, por entre a névoa da desinformação, olhares atentos, como o de Iraê Lundin, do Centro de Estudos Estratégicos de Moçambique, e o de Domenico Losurdo, da Universidade de Urbino, logo perceberam a impossibilidade de comparar a carnificina na Líbia com a chamada “primavera árabe”.
No Egito e na Tunísia, governos desgastados foram surpreendidos por movimentos espontâneos de jovens sem perspectiva de melhoria de vida. Ora, o mapa do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU atribui à Líbia a pontuação 0,755, perto dos países do sul da Europa e em situação mais favorável que o México (0,750) e o Brasil (0,699). Os jovens líbios têm oportunidades de estudo desconhecidas no ambiente africano. Cerca de 85% da população da Líbia é alfabetizada e, para uma população de 6,5 milhões de pessoas, havia nada menos de 12 universidades públicas. Mais de 30% do orçamento líbio é destinado à educação e as condições de moradia do país foram elogiadas pela ONU. Kadhafi não governaria durante décadas com base apenas na repressão, mas distribuindo a renda do petróleo de sorte a equilibrar razoavelmente os interesses de tribos e regiões.
Os egípcios e tunisianos foram às ruas sem armas; reclamavam mudanças, mas não disputavam o poder nem se articulavam com potências estrangeiras. Já os “rebeldes” líbios despontaram na Cirenaica com metralhadoras nas mãos, rumando a Trípoli. Não se tratava de uma rebeldia incontida da população sem comida, moradia e escola. Caberia perguntar é se desencadeavam uma guerra civil ou atendiam ao mando estrangeiro. Tudo faz crer que era uma intervenção externa adrede preparada. Antes da decisão da ONU de interditar o espaço aéreo líbio, centenas dos mais preparados soldados britânicos e muitos agentes norte-americanos atuavam na articulação da “rebelião”. Sem as armas lançadas por paraquedas franceses, sem as oito mil missões de bombardeio da OTAN e sem o bloqueio externo dos fundos governamentais seria difícil crer na queda de Trípoli.
A intervenção estrangeira foi justificada como sendo de defesa dos direitos humanos e da democracia. Os chefes estrangeiros, na verdade, temiam que, com a indefinição de rumos no Egito, Kadhafi retomasse a longeva militância pan-arábica e pan-africana, herdada de seu ídolo Gamal Abdel Nasser, o homem que, ludibriando os colonialistas britânicos e franceses, nacionalizou o canal de Suez. Com o norte da África desestabilizado e o Oriente Médio fervendo, uma possível projeção de Kadhafi deixou em polvorosa os combalidos dirigentes europeus, sobretudo tendo em vista que Obama evitava abrir mais um front.
Mesmo enfrentando grave crise econômica e crescente pressão social doméstica, Cameron, Sarkozy e Berlusconi bancaram a parada, revivendo infaustos episódios do século XX, quando britânicos, alemães, franceses e italianos se engalfinharam pelo domínio do território líbio. Depois da derrota de Rommel, em 1943, o Reino Unido tomou conta da Cirenaica e da Tripolitânia, enquanto a França administrava Fezã. Com a independência da Líbia, em 1952, e a imposição do descredenciado rei Sayyid Idris al-Sanusi, os Estados Unidos fincaram suas bases militares no país até a entrada em cena do jovem coronel Kadhafi, em 1969. Logo as empresas estrangeiras foram nacionalizadas e as tropas norte-americanas expulsas. O Coronel garantiria a unidade das 140 tribos que habitavam o território, empenhar-se-ia no pan-arabismo, conquistaria amizades por todo o mundo afro-islâmico e se atrapalharia no apoio a extremistas. Assim, não havia como deixar de ser promovido a grande inimigo do Ocidente, malgrado suas tentativas, já na era Bush,de aproximação com os Estados Unidos.
Autorizada pela ONU a negar o espaço aéreo a Kadhafi, a OTAN desconheceu todo o arcabouço legal, bombardeando duramente a Líbia, visando, sobretudo, eliminar seu dirigente e sua família.
Kadhafi já não mais governa nem dispõe de aviões. Que pretextos justificariam a continuidade dos bombardeios? Segue a caçada feroz, vitimando a população, sem que seus responsáveis sejam incomodados pelo Tribunal Penal Internacional, em Haia.
O intrigante é a persistência da dissimulação da cobiça pelo petróleo líbio e do medo do papel que Kadhafi poderia jogar na geopolítica mediterrânea. E risível, a esta altura, é a tentativa de apresentar Sarkozy, Cameron, Berlusconi e Obama como paladinos da liberdade do povo líbio!
"A Otan desconheceu todo o arcabouço legal ao atacar a Líbia para eliminar seu dirigente e a família"
"Kadhafi já não governa e nem dispõe de aviões. Que pretextos justificariam a continuidade dos bombar-deios?"
Manuel Domingos Neto Professor da Universidade Federal Fluminense e Coordenador do Observatório das Nacionalidades