As revoltas no Egito e na Tunísia estiveram em pauta na abertura da 11ª edição do Fórum Social Mundial, que começou domingo (6) em Dacar. Para os críticos do capitalismo reunidos no Senegal, os levantes populares no norte da África confirmam o lema do encontro, Um outro mundo é possível.
"Nos países árabes está acontecendo uma revolta contra o imperialismo norte-americano", afirmou o presidente da Bolívia, Evo Morales, o primeiro presidente indígena da América, num palanque instalado na Universidade Cheikh Anta Diop, no oeste da capital senegalesa.
Segundo ele, o capitalismo está agonizando no mundo por causa das revoltas populares. "Essa luta não pode ser parada, mesmo que os Estados Unidos tentem impedi-la por meio de muitos financiamentos e dinheiro", afirmou Morales.
O ativista alemão Alexis Passadakis, membro da rede internacional de crítica à globalização Attac, também traduziu o lema do Fórum Social Mundial na avaliação que fez das revoltas. “O que vemos na Tunísia e no Egito nos dá a percepção de que as coisas podem se movimentar um pouquinho numa direção diferente, por direitos sociais, por democracia. Mas, no final, aqueles que ajudaram a criar a crise continuam no poder.”
Para os africanos, Dacar quer dizer “espaço de liberdade”. E, se depender da reivindicação constantemente manifestada durante sua cerimônia de abertura, este Fórum vai celebrar como poucos a luta por este direito fundamental.
Não podia ser diferente. A 30 minutos da capital, chega-se de barco à ilha de Gorée, de onde partiram três milhões de africanos para serem escravizados pelo ocidente. Nas ruas, o resultado de uma história de dominação não pode ser indiferente aos cerca de 50 mil participantes do Fórum. O FSM 2011 será, portanto, um espaço de memória e também de fortalecimento das lutas dos povos pela liberdade.
Convidado ilustre da cerimônia de abertura do FSM 2011, Evo Morales fez questão de compartilhar sua história de luta social, política e cultural pela liberdade. Uma jornada que culminou em sua participação na luta eleitoral, para então assumir a presidência de um dos países mais pobres das Américas, recuperando o poder político dos excluídos.
“Assim como a África foi colonizada e submetida, a América Latina também foi invadida pela Europa, que para ali foi aniquilar povos indígenas”, comparou Evo Morales. “Hoje vivemos um processo de libertação na América Latina, uma etapa de descolonização profunda para chegar à verdadeira liberdade. E se somos presidentes anti-imperialistas é graças à luta de nosso povo”, disse.
Evo reiterou que a luta do povo árabe no norte da África também é uma luta contra o imperialismo norte-americano, que não pode ser paralisada. “Enquanto houver opressão, os povos seguirão se levantando”.
Caminho tortuoso
O caminho para a liberdade, no entanto, é tortuoso. Os inimigos, ao contrário do que podem imaginar os desavisados, não são apenas externos, mas estão dentro de cada país. É preciso, em primeiro lugar, identificá-los, alertou Evo. “Sabemos bem quem são os inimigos do povo: o capitalismo, o neoliberalismo, o neocolonialismo, que possuem instrumentos para seguir impondo políticas e saqueando as riquezas da população”, elencou.
A mensagem é muito bem compreendida na África, um continente explorado ao limite para proporcionar o enriquecimento de seus dominadores. Por isso, foi simbólico o pedido de desculpas pela escravidão apresentado pelo governo Dilma, representado pelo ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República, na abertura do Fórum em Dacar.
“Nos engajamos na luta por um outro mundo. Agora atravessamos o Atlântico, no sentido contrário ao da escravidão, saindo do Brasil, onde milhões lutaram e conquistaram sua liberdade, e venho, assim como o presidente Lula já fez, pedir perdão aos irmãos africanos”, declarou, em nome da presidenta brasileira. “Vamos reforçar os laços com os países africanos, numa relação política entre iguais, e não como dominadores, aprendendo juntos o caminho da liberdade”, afirmou Gilberto Carvalho.
Da resistência à tomada de poder
Mas passar da resistência à opressão para a tomada de poder rumo à libertação dos povos requer mais do que identificar os inimigos internos e externos. Na Bolívia, contou Evo Morales, isso só foi possível com a construção de um programa político gestado pelo povo.
A nacionalização dos recursos naturais, por exemplo, proporcionou mais que quintuplicar os investimentos públicos entre 2005 e 2011. De 600 milhões de dólares, saltaram para 3,2 bilhões. As reservas públicas subiram de 1,7 bilhão para 10 bilhões de dólares no mesmo período.
“Os recursos naturais não podem ser geridos por transnacionais do capitalismo. Devem ser nacionalizados e estar sob o controle do Estado. Quando os recursos naturais são usados para o povo é possível mudar o mundo. Outro mundo é realmente possível”, afirmou Evo Morales. “Assim, daremos esperança aos que vêm depois”.
Esperanza Huanda concordou. Na multidão que ouvia seu presidente, a indígena boliviana, uma das 84 mulheres que participaram da Assembléia Constituinte que ajudou a reescrever a história do país, lembrou da luta para reconstruir as autoridades originárias da Bolívia. Agricultora, membro do atuante Conselho Nacional Ayllus y Markas de Qollasuyo (Conamac), Esperanza chama a atenção para uma luta central no processo de libertação dos povos: proteger a natureza. “Ou morre o capitalismo ou morre a mãe-terra”, defendeu.
Evo já conhece bem a mensagem de seu povo. Em seu discurso, reforçou a obrigação de todas e todos em salvar o planeta. “Os resultados de Cancun e Copenhague não impediram a continuação do aquecimento da Terra. E não há lugar melhor do que o Fórum Social Mundial para nos prepararmos para o próximo encontro climático dos chefes de Estado. Não tenho dúvidas de que o povo africano vai pressionar e convencer seus governantes para que também combatam o aquecimento global. É preciso mudar os modelos de desenvolvimento e produção e acabar com o capitalismo”, disse.
Evo Morales finalizou sua fala emocionado por estar em mais um Fórum Social Mundial, e dando mais uma lição para os governantes que de fato buscam libertar sua população ao chegarem ao poder: “Que os presidentes aprendam com os fóruns, como eu aprendi, vocês foram meus professores”. E que a África, berço da humanidade, seja mais uma vez o solo deste novo mundo em gestação.
O Fórum
Os organizadores do Fórum Social Mundial estimam que entre 20 mil e 30 mil pessoas participaram da marcha de abertura de evento, percorrendo quase 5 quilômetros sob um sol escaldante, entre a Grande Mesquita de Dacar e a universidade Cheih Anta Diop. A marcha marcou o início do encontro, que prossegue até o dia 11 de fevereiro e discute tanto a crise do capitalismo quanto o que chama de crise das civilizações.
Para muitos participantes africanos, é importante que um continente considerado negligenciado tenha a oportunidade de mostrar seus problemas e propor soluções alternativas.
Além de Morales, o Fórum Social Mundial conta com a presença de várias lideranças internacionais, como a presidente do Partido Socialista da França, Martine Aubry, e o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, em sua primeira viagem internacional depois de deixar o governo.
O Senegal é governado por um adepto do liberalismo, Abdoulaye Wade, que também costuma enfrentar protestos contra o seu governo.