Entrevista


Oswald Barroso, uma das personalidades mais marcantes do Ceará, concedeu entrevista ao blog Coletivo Camaradas. Na conversa, o Mestre e Doutor em Sociologia, professor, poeta, jornalista, folclorista e teatrólogo falou sobre sua trajetória, arte e políticas públicas para cultura. Publicamos a seguir, na íntegra, a entrevista com Oswald Barroso.
Oswald Barroso

"O papel do artista é trabalhar para a sociedade, atender a demanda da sociedade".
Se os bandeirantes estiveram a serviço do Rei, Oswald Barroso, que é de outro tempo, esteve a serviço das camadas populares, descobrindo e esculpindo a história do povo do Ceará pisoteada pelas elites econômicas. Entre travessias e encruzilhadas percorreu os 184 municípios cearenses para transformar em arma emancipatória a história e a arte do seu povo.

Quem é Oswald Barroso?

É um multiartista pesquisador que tem procurado se dedicar à causa dos oprimidos, atuando como uma espécie de griô, ou um exu, como queiram, sempre em travessias e encruzilhadas: vendo, ouvindo, sentindo a vida popular, traduzindo estas vivências em formas artísticas, para difundi-las em novos caminhos. Comecei com desenho, pintura e poesia. Depois desenvolvi um bom trabalho como letrista e cheguei mesmo a tentar ser músico. Até que me fixei no teatro e fiz ainda muitos vídeos documentários, chegando mesmo a gravar uma experiência em ficção, O Filho do Herói, para a TV Educativa, atual TVC. Hoje gosto também de fotografar, como uma forma de anotação etnográfica. No teatro, passei 18 anos no Grita, 10 no Boca Rica e agora estou do Teatro de Caretas. Fiz de tudo, trabalhei como ator, diretor, dramaturgo sempre, cenógrafo, iluminador etc. No jornal, fiz reportagem, ensaios e crítica de arte e, na universidade, ensino música nas tradições populares, estética, cultura brasileira e antropologia da arte. Admiro o homem renascentista, que transitava entre artes, saberes e culturas sem a menor cerimônia. Quem sabe estejamos retomando esse caminho.

Quando teve inicio seu trabalho artístico?

Em 1964, depois que um acidente de trânsito encerrou minha carreira de atleta. Eu tinha 16 anos e havia sido convocado para a seleção cearense de vôlei. Uma camionete rural partiu minhas duas pernas, fraturas expostas, e mudou meu destino. Passei mais de um ano acamado e outro ano em tratamento hospitalar no Rio de Janeiro. Foi a oportunidade de conhecer toda a literatura brasileira, principalmente a poesia, e muito do modernismo europeu. Eu lia, escrevia e desenhava sem parar. No Rio de Janeiro, onde passei o ano de 1965, entre uma internação e outra no hospital, freqüentei a vida cultural da cidade: museus, bibliotecas, cinemas, shows, festivais. Voltei muito informado à Fortaleza. Já em 1966, no Colégio São João, me liguei ao grêmio e formamos um grupo de estudos marxistas. No ano seguinte, descobrimos articulações com o pessoal de esquerda, não só com o movimento estudantil, mas com o movimento popular, pescadores e operários de fábrica, no caso, porque eram eles que a gente queria retratar em nossa arte.

Quais as influências do seu trabalho?

No início por influência do meu pai, poeta modernista, que colocou meu nome em homenagem a Oswald de Andrade, foram os poetas modernistas brasileiros: o próprio Oswald, Mário, Carlos Drummond, Vinícius de Morais, Manoel Bandeira, Solano Trindade, com destaque João Cabral (considero Morte e Vida Severina o maior texto dramático brasileiro), os cearenses, principalmente: Antônio Girão, Aluízio Medeiros e Jáder de Carvalho. Entre meus professores: André Haguette, Francisco Alencar e Diatahy Bezerra de Menezes. Entre amigos de geração, parceiros, me influenciaram diretamente: Adriano Espínola e Rosemberg Cariry. Dos romancistas e intelectuais brasileiros: Graciliano Ramos (à lucidez de quem atribuo ter sobrevivido às torturas, pois graças à leitura de Memórias do Cárcere nas vésperas da prisão tive um comportamento adequado.), Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Darcy Ribeiro. Mas também: Gregório de Matos Guerra. Entre os latino-americanos: Gabriel Garcia Marquez, Eduardo Galeano, Ciro Alegria, Juan Rulfo, Jorge Luis Borges etc. Teatrólogos: Brecht, Meyerhold, Maiakóvski, Gorki, Peter Brook, Ariane Mneouchkine, os teatros tradicionais de modo geral etc. Mestres tradicionais: Sebastião Cosmo, Aldenir Callou, Manoel Ramos, Manoel Torrado, Biu Alexandre, Apolônio Melônio, João de Cristo Rei etc. Ainda: Joseph Campbell, Iung, Levi Strauss, Fritjof Capra. E mais: Van Gogh, Picasso, Portinari, Glauber Rocha etc.

Como você vê a relação entre arte e política?

Se a gente fala de política no sentido de que “o homem é um animal político” (nesse sentido, aliás, todo animal é político, porque disputa território), então a política sendo uma dimensão do humano é, por consequência, uma dimensão da arte. É inquestionável que toda obra artística, sendo expressão do ser total, que por isso mais que qualquer outra manifestação do espírito humano implica subjetividade, traz em si uma visão de mundo expressa pelo autor e lida de algum modo pelo receptor. Arte sem significado, sem posicionamento sobre a realidade, sem tomar partido, não é arte, está mais para enfeite, arabesco, confeito e olhe lá.

O que é arte engajada para você?

Pra mim, portanto, toda arte é engajada. Agora o artista escolhe em que causas engajar sua arte. Hoje, a maioria prefere engajar em campanhas comerciais. Vender o laptop da Xuxa, o tênis da Adidas e outros produto tais, como nas novelas e nos especiais de Natal da Globo. Mas uns preferem engajar em campanhas de caridade, outros em campanhas de saúde pública, usar camisinha, ou de incentivo ao pagamento de impostos etc. Alguns em campanhas de conscientização política, como os CPCs da UNE, ou o Teatro do Oprimido do Boal. Outros ainda em campanhas eleitorais para determinados candidatos. Outros, pelo contrário, em mostrar que a arte é biscoito fino para poucos eleitos e não diz respeito às massas, por isso deve ser financiada pelo governo. Aqueles mais conscientes, neste último caso, se contentam com a compra de suas obras por milionários. E assim vai. Cada um escolhe seu engajamento.

Qual o papel social do artista?

Nas sociedades paleolíticas todas as pessoas fazem arte. Entre os índios brasileiros, por exemplo, isto acontece, e é muito bom. Não se distingue o artista. No neolítico aparece o artista, como artífice. É quando a arte se distingue entre os outros ofícios. Aparecem as várias artes de ofício. O papel do artista, então, é trabalhar para a sociedade, atender a demanda da sociedade. Penso que este deve ser seu papel social até hoje, o de um trabalhador para o bem da sociedade, ou seja, atender à demanda social. Agora, ele deve saber para quem trabalha. Se para o Rei, como os atores da comedia del’arte, ou para o populacho, como os jograis e saltimbancos? No caso, se para os empresários e banqueiros, ou para o povo e os movimentos populares? Eu gosto muito de trabalhar para os assentados (como fiz no projeto sertão da tradição), as dramistas (como no projeto dramas do litoral leste), os romeiros, os sem-terra, os sem-teto etc., mas trabalho também para algumas editoras ou instituições públicas, que não me cerceiem a liberdade de expressão. Quase sempre trabalho sob demanda. Por minha iniciativa mesmo tenho trabalhado pouco. Falta tempo, embora não falte planos.

Qual a contribuição social do seu trabalho?

Acho que tenho contribuído para dar visibilidade à cultura popular do Ceará, principalmente aos reisados e às romarias, mas também ao artesanato. Isso não é pouco ao se levar em conta que a elite do Ceará, especialmente, sempre deu às costas ao seu povo. Quando eu nasci, nossa elite ainda estava no auge de uma cruzada para “civilizar” o Estado, lutando para fazer desaparecer tudo quanto é traço de cultura indígena e africana do nosso cotidiano. Esse horror ao popular ainda é muito forte na Fortaleza do Leste, que se espelhava em Londres e Paris, depois em Miami e agora em Dubai (embora ainda haja quem vá à Disney). No teatro, tenho tentado mostrar que temos referência para construir uma linguagem cênica nossa, original, sem copiar o estrangeiro ou o sul maravilha.

Você deu uma grande contribuição para a pesquisa científica no processo de redescobrimento, registro e discussão sobre as manifestações da “cultura do povo” no Estado do Ceará ?

Tenho muitos motivos de orgulho na vida, um deles é ser doutor em reisado e outro é ser cidadão honorário de Juazeiro do Norte. Já viajei por todos os 184 municípios do Ceará, vários distritos e inúmeras localidades de muitos deles. Dezenas visitei várias vezes. Outros, dezenas de vezes, como Juazeiro do Norte. Nestas pesquisas, o que eu fiz foi ouvir histórias. Eu sempre viajei para colher boas histórias. Não eram pesquisas científicas propriamente ditas. Não acredito em ciência objetiva, em conhecimento objetivo. Trabalhei inicialmente como repórter de O Povo. Vivia viajando por Fortaleza, desde o centro até a periferia, e pelo interior do Estado, entrevistando gente, colhendo boas histórias e dando a elas a forma da minha arte.

Depois inventei de ser pesquisador, trabalhando na Secult e, em seguida na Universidade, onde continuei fazendo o mesmo, colhendo mitos, lendas, histórias de trancoso, de mistério, do arco da velha, de lutas populares, de assombração, dramas pessoais, aventuras, poesia que eu via, ouvia, imaginava, vivia. Às vezes, essas histórias eu resolvia viver eu mesmo, me aventurava, para depois escrever, desenhar, reviver. Vivenciei muitas das peripécias que conto. É bom porque a gente não perde um detalhe. Almanaque Poético é um livro assim.

O que representou e representa para você o trabalho de pesquisa?

É uma forma de viver, uma razão para caminhar, a busca de um mistério, a tentativa de compreender o mundo ou talvez apenas de viver de uma maneira desafiadora e prazerosa. É também a fonte de toda a minha criação e imaginação. Nenhuma imaginação solitária é mais poderosa do que a imaginação do inconsciente coletivo.

Fale dessas pesquisas?

Embora já conhecesse a cultura popular desde menino, da feira do Ipu, onde eu passava as férias, e da periferia do grande Recife, onde vivi na clandestinidade, foi numa romaria ao Juazeiro do Norte que se deu meu grande alumbramento. Daí começaram as pesquisas sobre os mistérios do povo romeiro: cordelistas, xilógrafos, imaginários, profetas, beatos, conselheiros, cantadores, mestres de reisado, santos etc. Aprendi que há uma religião que não é o ópio do povo mas que é dele, nascida de sua alma e por seu espírito alimentada e passei a querer desvendar sua lógica e seus mistérios. Participei de pesquisas seguidas: Artesanato Cearense, Literatura de Cordel, Reis de Congo e Reis de Bailes, Caminhos de São Francisco, Atlas da Cultura Cearense, Festas Populares do Ceará, Memória do Caminho, Sertão da Tradição, Terreiro da Tradição, Mãos Preciosas, Dramas Populares do Litoral Leste, Reis Assentados, Guia Turístico do Ceará, Máscaras Brincantes etc. Como jornalista, escrevi mais de 400 textos, entre artigos e reportagens, a maioria dos quais versando sobre assuntos da cultura cearense. Uma parte das histórias colhidas ainda não foram processadas e outra parte, mesmo transfiguradas, ainda não foram publicadas.

Como você analisa a nova conjuntura para as políticas públicas para cultura no país?

Penso que os pontos altos do Governo Lula foram as políticas externa e cultural. Gilberto Gil incluiu o Brasil e sua diversidade cultural na ação do Minc., além de solidificar uma prática de editais. Juca foi adiante e queria modificar a Lei Rouanet, assim como a Lei de Direitos Autorais. A nomeação da nova Ministra da Cultura Ana Holanda foi uma reivindicação da elite do Rio-São Paulo que se opõe a esse caminho. Ela surge como representante do pessoal que quer um ministério para os artistas midiáticos e para a indústria cultural. Em compensação, acabo de saber da nomeação do Francisco Pinheiro para a Secult Ce., fato que aponta em sentido contrário, ou seja, para uma política de cultura ampla e diversificada.

Nas sociedades primitivas a arte não se separava da vida. Você acredita na necessidade deste reencontro arte-vida?

Com certeza, penso que caminhamos para um novo projeto civilizatório onde não apenas a arte se desfragmente, refundindo-se em suas diferentes linguagens, como se reintegre à vida, de tal modo que desapareça, até mesmo, a palavra arte, porque tudo será arte. Como fazem os índios, que dedicam a vida, integralmente, a encher de beleza o universo.

Qual a importância dos Coletivos de artistas dentro da produção estética e artística?

É total, porque os grandes movimentos artísticos, a melhor arte, embora haja o talento individual, sempre é produção da coletividade. As grandes escolas, os grandes estilos, as grandes criações, o grande saber, o grande fazer artístico é coletivo. O gênio só brota no coletivo. O talento individual precisa de terreno propício para florescer. Nas culturas tradicionais isto é muito evidente.