O superávit comercial da China subiu para US$ 20,02 bilhões em junho, superando os US$ 19,5 bilhões registrados em maio e as expectativas dos analistas, que esperavam um saldo menor, em torno de US$ 14 bilhões. O resultado tende a acirrar as pressões dos EUA e do G-8 para que o país adote o câmbio flutuante.
Em 19 de junho, cedendo parcialmente à pressão das maiores potências capitalistas, lideradas pelos norte-americanos, o banco central chinês anunciou uma política de flexibilização gradual da moeda. Desde então, o iuan sofreu uma valorização controlada de 1% em relação ao dólar, um percentual modesto que não convenceu os líderes do chamado Ocidente (conceito político controverso, que inclui o oriental Japão), que estimam em até 40% a defasagem cambial entre as duas moedas.
Maior devedor do mundo
Governo e políticos dos Estados Unidos estão acostumados a culpar a China pelos desequilíbrios da economia mundial originados pelo déficit externo estadunidense, que constitui a raiz da crise econômica internacional na opinião do economista Stephen Roach, presidente do banco Morgan Stanley na Ásia.
Em certa medida, o déficit externo cultivado por Tio Sam é hoje a contrapartida do superávit chinês. Mas, é historicamente errado culpar a China pelo rombo, mesmo porque o problemão teve início em 1971, ano em que o ex-presidente Richard Nixon decretou o fim do lastro do dólar em ouro. Não foi por mera coincidência.
O saldo negativo no intercâmbio de mercadorias traduz o crescente parasitismo da maior economia capitalista do mundo. Decorre da baixa taxa de poupança interna e do costume, adquirido ao longo dos anos, de complementar os investimentos domésticos com lucros remetidos do exterior por suas transnacionais e com a importação (líquida) de capitais, o que transformou o império de grande credor mundial em devedor líquido.
Desde meados dos anos 1980, os EUA (governo, empresas e indivíduos) acumularam o maior passivo externo líquido, bem como a maior e mais escandalosa dívida de todo o mundo. Sem poupança própria (o endividamento externo líquido sempre reflete isto), seguem financiando os débitos com capital importado da China, Alemanha, Japão e outros países com superávit no balanço de pagamentos, inclusive o Brasil.
Padrão de acumulação capitalista
O déficit externo americano, que alguns ilustres economistas desprezam em função do papel especial do dólar na economia mundial, é uma fonte de recorrentes turbulências financeiras globais e já se revelou insustentável em longo prazo. O fato de que os débitos estão denominados em dólar e teoricamente podem ser pago com a mera emissão de papel-moeda não muda muita coisa.
A dívida contraída despreocupadamente por Tio Sam ajudou a moldar o padrão de acumulação e reprodução ampliada do capital em escala mundial pelo menos desde os anos 1980. O déficit comercial, recorrente desde 1971, transformou-se numa via privilegiada (talvez a principal) de realização do capital estrangeiro destinado à exportação.
Associado ao desenvolvimento desigual das nações, o parasitismo promove, conforme dizia Lênin, a lenta decomposição do poder econômico da potência hegemônica. Isto ficou evidente no início do século 20 em relação à Inglaterra, conforme notou e relatou o economista e historiador inglês John Hobson. Agora transparece no declínio relativo da indústria estadunidense, que já foi, outrora, a mais competitiva do planeta.
Desequilíbrios
A razão dos “desequilíbrios mundiais insustentáveis” (nas palavras de Roach) encontra-se dentro dos próprios EUA e diz respeito ao decantado American way of life (estilo de vida americano), fundado no consumismo excessivo de suas elites, que não encontra contrapartida na produção interna de sua decadente indústria.
Foi o consumo além dos próprios meios que promoveu o endividamento e este ensejou a dependência frente ao capital estrangeiro, especialmente chinês. Nisto reside a lógica do parasitismo, que consiste (conforme sugerem os dicionários) na arte ou artimanha de viver além dos próprios recursos, ou seja, à custa alheia. Em escala social, é um fenômeno chocante.
Se realmente quiser se livrar deste problemão, o obeso Tio Sam terá de recorrer a uma dieta recessiva não muito diferente daquelas que o FMI impõe aos países considerados periféricos, como o Brasil em passado recente e a Grécia na atualidade. Em poucas palavras, o império terá de consumir menos e poupar mais, de forma a reaprender a caminhar com as próprias pernas.
Ainda que agissem segundo o figurino do FMI, os EUA não conseguiriam recompor a hegemonia econômica. Mas, a dieta recessiva é uma alternativa politicamente explosiva (pois implica uma redução drástica da taxa de consumo, que hoje representa 70% do PIB) e muito provavelmente não será adotada. É bem mais fácil transformar a China em bode expiatório da crise mundial.
A irônica dialética do parasitismo
É fato que a China se alimenta do parasitismo americano, transformando a crise do império em oportunidade de bons negócios num contexto de transição marcado pelo desenvolvimento desigual. Os superávits acumulados no comércio bilateral com os EUA, aliados aos investimentos estrangeiros diretos, são a fonte das reservas de quase 2,5 trilhões de dólares da próspera nação asiática, as maiores do mundo. A dialética do parasitismo num cenário de desenvolvimento desigual é irônica.
A China já ocupa (desde 2009) a primeira posição no ranking mundial das exportações, depois de superar a Alemanha e os EUA (hoje em terceiro lugar). Isto não é pouco, mas também não é tudo.
No rastro da recessão da economia norte-americana, que teve início em dezembro de 2007 e contagiou o globo, os chineses intensificaram os investimentos diretos no exterior, deixando transparecer a estratégia de transformar reservas em ativos reais, opção certamente mais sábia do que aplicar em títulos públicos emitidos pela Casa Branca. Revelam-se agressivos no concorrido jogo de aquisições e instalaçãoi de novas empresas no mundo, jogo no qual os EUA, depois que se transformarmam em importadores (líquidos) de capital, já não desempenham o papel de protagonista, conforme notou o historiador inglês Erick Hobsbawm. A não ser na ponta da oferta, como vendedores.
Aos poucos a nova potência que emergiu com força na Ásia vai configurando um outro centro provedor de crédito e capitais para economias carentes de poupança, favorecendo a autonomia financeira de muitos países em relação às velhas potências capitalistas (EUA, Inglaterra, Japão, Alemanha, França, entre outras), embora criando uma nova dependência. Trata-se de um movimento ainda incipiente, que promete instigantes desdobramentos no futuro. O pêndulo do poder econômico mundial se move inapelavelmente do Ocidente para o Oriente. Não é ocioso notar que, no caso da China, é o Estado – e não os monopólios privados – quem detém a capacidade de investimentos externos. Isto faz diferença.
O pêndalo do poder mundial
O peso do comércio exterior neste processo não pode ser negligenciado. A China exportou US$ 137,4 bilhões em junho e importou US$ 117,4 bilhões. Para fazer uma ideia da relevância desses números basta dizer que entre janeiro a maio deste ano as vendas externas brasileiras alcançaram apenas US$ 83,138 bilhões e as compras foram de US$ 75,744 bilhões. Ou seja, o valor da corrente comercial brasileira (exportações mais importações) em cinco meses é significativamente menor que a magnitude do intercâmbio chinês com o mundo num único mês.
As exportações chinesas em junho foram 43,9% maiores que no mesmo mês do ano passado, o que ainda indica uma recuperação extraordinária (da crise), embora também sinalize uma ligeira desaceleração em relação ao avanço de 48,5% obtido em maio. As importações cresceram 34,1% em junho, bem menos que os 48,3% de maio.
Os EUA, com apoio do G-8, devem intensificar as pressões para que a China adote o câmbio flutuante, mas é pouco provável que obtenha sucesso nesta empreitada. O governo comunista do país já avisou que política cambial é tema de política doméstica com reputação de questão de soberania nacional.
Não fosse o controle sobre o câmbio a economia chinesa provavelmente não teria reagido tão bem à crise asiática () e à contração do mercado estadunidense e mundial ao longo de 2008.
O câmbio flutuante, que a partir dos anos 1970 substituiu a política cambial (de câmbio fixo) acordada em Bretton Woods no pós-guerra, é uma herança neoliberal que resiste aos trancos e barrancos num ambiente internacional carregado de crises e instabilidade monetária. Tentar transformá-lo em dogma é mais um contrassenso imperial no contexto de uma ordem mundial caduca que clama por substituição.