Assim que terminou o curso de costura industrial promovido pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), em Fortaleza (CE), Lúcia Inês Batista da Silva começou a trabalhar numa das maiores indústrias de confecções do país.
Um ano e meio após o início da nova atividade – em janeiro de 2010 – a beneficiária do Programa Bolsa Família, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), tirou férias e aproveitou o merecido descanso. Outro bom motivo para comemorar é que além do salário de R$ 555,00, Lúcia já ganha prêmio por produção. “Foi uma virada na minha vida. Hoje sou uma profissional”, declara a cearense, que planeja adquirir uma máquina de costura industrial para aumentar a renda e melhorar os calçados e cintos produzidos pelo marido em casa.
A história de Lúcia Batista desmente texto anônimo que circula na internet, segundo o qual 500 mulheres atendidas pelo programa de transferência de renda foram capacitadas na área têxtil, em Fortaleza, e nenhuma delas aceitou emprego para não perder o benefício do Bolsa Família.
Desafio da inclusão – Lúcia Batista integra o grupo de 240 beneficiárias (e não 500, como diz o texto inverídico) que iniciaram a qualificação. Destas, 154 finalizaram o curso com a média mínima exigida (acima de 8) e foram encaminhadas ao Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem em Geral no Estado do Ceará (Sindtêxtil), que deveria viabilizar o ingresso das beneficiárias no mercado de trabalho, conforme prevê o acordo de cooperação técnica assinado, em 5 de junho de 2008, entre a Secretaria Municipal de Assistência Social de Fortaleza (Semas), o Sindtêxtil e o Senai regional do Ceará.
Levantamento feito pela Semas, sobre 145 mulheres que foram qualificadas e encaminhadas ao sindicato, mostra que apenas 16 beneficiárias ou 11% foram indicadas pelo Sinditêxtil para entrevistas de empregos em empresas de seus associados. O relatório da secretaria destaca que todas as mulheres que estão trabalhando na área do curso desenvolvido pelo Senai conseguiram vagas no mercado de trabalho por iniciativa própria ou por indicação da própria secretaria e não pelo sindicato, conforme previam as obrigações estabelecidas pelo acordo de cooperação.
Um exemplo é a beneficiária do Bolsa Família Francisca da Silva Santos. Ela, que também fez o curso profissionalizante, foi entrevistada por uma outra indústria de confecções, há mais de um ano, e até agora não foi chamada para trabalhar. Viúva e mãe de três filhos, Francisca se vira como pode. Comprou uma máquina de costura e faz consertos básicos. “Ganho uns trocados que dá para comprar o pão. “Quero ter o meu emprego e a minha carteira de trabalho assinada”, afirma a beneficiária, contradizendo o texto que tenta disseminar a falsa idéia de que a população atendida pelo Bolsa Família fica acomodada ao receber o benefício.
O balanço da Semas aponta que 57 mulheres foram inseridas no mercado de trabalho da capital cearense, mesmo sem a participação efetiva do Sindtêxtil. Das 145 mulheres pesquisadas, 127 ou 88% declararam que são capazes de exercer a atividade de costureira e 89 (61%) tiveram oportunidade de adquirir experiência no mercado formal ou informal de trabalho.
Preconceito – “A parceria tornou visível o preconceito do segmento empresarial com o Bolsa Família e com as mulheres”, afirma a secretária municipal de Assistência Social, Elaene Rodrigues. Ela revela que, inicialmente, alguns representantes do setor têxtil queriam que as mulheres qualificadas trabalhassem três meses sem remuneração para depois serem avaliadas. Essa proposta foi recusada pela Secretaria de Assistência Social.
“Os empresários não foram sensibilizados pelo Sindtêxtil, conforme previam as regras assumidas na parceria” revela a secretária. Lúcia Batista começou a trabalhar sem que houvesse indicação do sindicato. Assim como ela, as outras participantes do curso precisam de condições especiais para se inserirem no mercado de trabalho. “Algumas estão fora do mercado há muito tempo, outras nunca tiveram a carteira de trabalho assinada e existe uma parcela que nunca trabalhou”, avalia a mobilizadora social da Semas, Lucimeire Calandrini.
Outro problema identificado por Lucimeire é que a mulher é considerada mão-de-obra barata pelo segmento de confecção em Fortaleza. “Muitas empresas querem que as mulheres trabalhem por produção, pagando valores que variam entre R$ 0,10 e R$ 0,20 centavos por peça costurada”, conta a mobilizadora social. Nessas condições, segundo Lucimeire Calandrini, mesmo que a mulher trabalhe o mês inteiro consegue ganhar, no máximo, entre R$ 30,00 e R$ 40,00.
O curso de costura industrial foi realizado no período de junho a setembro de 2008, mas em janeiro de 2010 o sindicato não soube precisar quantas mulheres foram incluídas no mercado de trabalho por iniciativa da entidade. O presidente do Sindtêxtil, Ivan Bezerra Filho, negou que a indústria têxtil e confeccionista local pague valores tão baixos. “O setor de confecção cearense possui o hábito de remunerar seus colaboradores com benefícios como o “prêmio de produção”. Tal benefício, entretanto, não implica em prejuízo quanto aos valores salariais fixos mensais, que à época variavam entre R$ 400,00 e R$ 600,00”, observou Bezerra, em resposta encaminhada ao MDS por e-mail.
Explicações – A sensibilização do segmento empresarial foi feita pelo Sindtêxtil por meio de mala-direta às entidades parceiras. Segundo informações enviadas ao MDS, o sindicato delegou ao Sistema Nacional de Empregos (Sine) o encaminhamento das beneficiárias qualificadas às vagas de trabalho de acordo com a demanda existente. O Sindtêxtil também desconhece casos em que as mulheres qualificadas se recusaram a trabalhar para não perder o benefício do Bolsa Família. A qualificação das costureiras foi custeada pelo Governo Federal e pela Prefeitura de Fortaleza. O acordo de cooperação estabeleceu que do total de R$ 400 mil, R$ 388 mil foram recursos da União e R$ 12 mil do orçamento municipal.
Benefício e carteira assinada – Carteira assinada não impede a família de receber o benefício do Bolsa Família. O critério para inclusão no programa do MDS é renda mensal de até R$ 140,00 por pessoa. Uma família com quatro integrantes, que tem como renda um salário mínimo, por exemplo, pode acumular os valores do benefício e do trabalho, desde que tenha filho de até 17 anos freqüentando a escola. As famílias também podem permanecer no programa por dois anos, mesmo com variação de renda acima do limite instituído. Esse período é necessário para que a família tenha segurança de que a sua inserção no mercado de trabalho é sustentável.
A tentativa de mostrar que os valores transferidos pelo programa – que representam um incremento médio de 47% na renda das famílias – geram acomodação dos beneficiários não se sustenta. Segundo o IBGE, entre os beneficiários do Bolsa Família, o índice de pessoas trabalhando é de 77%, um pouco maior do que os não-beneficiários (73%). De acordo com o Ibase, 99,5% dos beneficiários não deixaram de fazer algum tipo de trabalho depois que passaram a receber o Bolsa Família. O programa atende cerca de 12,4 milhões de famílias em todos os Municípios brasileiros, transferindo a essa população mais de R$ 1,1 bilhão por mês. Estudos mostram que o Bolsa Família contribuiu para redução da pobreza, da desigualdade e garante acesso à alimentação da parcela considerada extremamente pobre.